Página 52 - Códice nº3, ano 2006

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sua tarefa era evitar que esses farrapos de palavras perfumadas se
evolassemao vento frio do Inverno da alma que não tem tréguas nem
compaixão. Num jardinzinho florido pelo azul do luar a ninfa de asas
de bronze reclinada sobre o lago redondo segredou-lhe a divina tris-
teza de Anrique Paço d'Arcos
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:
Que tristeza infinita me rodeia!
O céu abriu em alma sobre a terra...
Fonte de luz etérea, a lua cheia,
Já em rio correndo, vem da serra.
E desce pela encosta em loira vaga,
Vago aroma de luz que vem do Além;
Rio de luz que a natureza alaga,
O céu desfeito em lágrimas também...
O céu chorando... Uma doçura infinda,
Pairando no ar, perfuma a noite linda,
Que tem flores de luz ainda orvalhadas...
E toda a noite linda perfumando,
Como a alma do sol ao vento errando,
Cáe o luar em pétalas doiradas...
Aquela dor era bem a sua, a saudade de
umabelezaperdidaqueassimse revelavaem
doces aromas e claridades fugitivas. A nos-
talgia de um amor que para sempre parecia ter abandonado o cora-
ção da humanidade. O Sr. X olhou a cidade mergulhada em neblina,
Umvultopensativodeambulanasmargens da fantasiapermitida,com
as folhas de ouro inventa um colar de sonhos e cintilações, lenta-
mente avança entre os gestos sem alma e as almas sem gestos em
busca da poesia e do amor perdidos. Só as crianças o olham no rosto
com um sorriso de cascata feliz, e aquele é mais um dia para o fun-
cionário cansado gastar as suas esperanças
desabitadas.Funcionário do ofício de viver,proi-
bido de fugir dos limites e das fronteiras da
cidade dos homens, a cidade onde tudo tem
um preço, demasiado alto para comprar um
pouco de felicidade.
Errando ao acaso pelas praças e pelas ruas cin-
zentas, com o seu casaco escuro, dir-se-ia a
própria imagem do homenzinho saído do qua-
drodeMagritte que Folon fez passear emLisboa
disfarçado de Fernando Pessoa. Esperava uma
pequena revelação, um milagre seria talvez
demasiada sorte para alguém que não tinha
ainda aprendido a nascer. Olhando as montras
e as fachadas viu que elas tinhammuitas pala-
vras coladas e que essas palavras eram frag-
mentos de poemas de um tempo ainda não
muito antigo,verdadeiro legado de beleza que
precisava guardar e que ninguém, a não ser
ele, via.
Apressou o passo e percebeu que os poemas o
espreitavam a cada esquina, disfarçados de
mendigos ou de dias cinzentos e que por vezes
bastava levantar uma pedra ou virar uma velha folha pisada para
encontrar versos maravilhosos. Tornou-se um peregrino da poesia, a