Página 50 - Códice nº3, ano 2006

50
até à actualidade), encontrei também alguma coisa que pareceu vir
ao meu encontro da forma mais inexplicável, um conjunto verdadei-
ramente excepcional de postais de amor de desconhecidos, justa-
mentedoperíodoqueestudarae se caracterizavapor um ideal de tota-
lização,unindo o real e o imaginário,omasculino e o feminino,a razão
e o sonho, o cosmos, o humano e o divino. Sensualidade, misticismo
eabeleza requintadada iconografiados postais compunhamesse ideal
e todo um fresco de uma época, com as imagens da arte, da nature-
za e da sociedade,mas sobretudo comas linhas de fundo de uma sen-
sibilidadeprofundamente ligadaao sonhoeà fidelidadeao sentimento,
à sua pureza, um património hoje quase ignorado, tesouro precioso
que ia recolhendo nasmais diversas fontes,incansavelmente,obses-
sivamente. Da banca de rua, aos mais diversos alfarrabistas, a Feiras
ao ar livre, com intervalo de anos, fui reunindo postais e bilhetes de
amor de casais desconhecidos, por vezes com nomes bem sonantes,
que o tempo se tinha empenhado emdispersar,sema coragemde ver-
dadeiramenteos destruir.Comoas cartas deQuimaGeorginaque iden-
tifiquei pelas espirais da caligrafia e descobri em locais e tempos dis-
tintos, ligando-as de novo às da sua amada. Ou o comovente bilhe-
te de amor de Jayminho que encontrei perdido numa feira e pude
juntar às suas cartas a Lili, muito antes achadas. Exemplos de um
verdadeiro e inesgotável redemoinho que no seu seio confundira as
expressões de amor, a sua beleza que eu recebia agora deslumbra-
da, devolvendo-as ao tempo presente. Sentia-me escolhida para
valorizar e dar um sentido a esse património que a todos pertence.
A essa paixão seguiu-se a dos livros de poesia (e também de prosa e
ensaio) de autores esquecidos ou desconhecidos e também conhe-
cidos,do final do século XIX e início do século XX,umperíodo ainda tão
próximodenós equeparecia jáenvolvidoemcinzas.António Feijó (1859-
-1908),
António Correia de Oliveira (1879-1960), João Lúcio (1880-
Às cartas de amor perdidas dos meus pais José Augusto e Maria Luísa, ao
Gonçalo,a Fernando Pessoa e Ofélia que resumiramo espírito de uma época,
a todos os anónimos cujas palavras de amor,maravilhosas conchas do ocea-
no dos sentimentos, recolhi num puzzle assombroso ao tempo devolvido.
«(...)
a obra de arte o único meio de reaver o Tempo Perdido (...).»
Marcel Proust
Em Busca do Tempo Perdido ( 7 - O tempo redescoberto )
« (…)
Tinha o gosto esquisito e fino do mistério:
O Amor ignorado era o Amor dilecto (…)»
João Lúcio –
Espalhando Fantasmas
.
Há alguns anos, quantos, já não sei precisar, e na sequência de uma
tese de mestrado sobre a obra do meu bisavô, o arquitecto aveiren-
se Francisco Augusto da Silva Rocha e o período Arte-Nova - 1890-1914
(
que em Portugal se prolonga até aos anos 20), descobri por acaso o
sortilégiodas cartas deamor dedesconhecidos,se équepodemos falar
de acaso, tratando-se do que considero uma espécie de revelação de
um tempo e do património da sensibilidade de toda uma época.
É certo que tinha então perdido alguma coisa, uma parte da crença
no sentimento dos meus contemporâneos, umgrande projecto para
uma exposição de Arte Nova portuguesa no estrangeiro, na qual me
empenhara inteiramente e que não tivera seguimento. Talvez por
isso, no espaço de cerca de um ano (que depois se prolongou quase