Página 82 - Códice nº1, ano 2004

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cadeada não só pelo crescimento económico mas sobretudo pela
existência e publicitação, por parte de uma corrente política influen-
te (constituída em torno do partido regenerador), de um projecto de
reforma para o país.A reforma centrar-se-ia no desenvolvimento (que
efectivamente ocorreu) das infra-estruturas económicas a expensas
do Estado e tinha como objectivo anunciado criar condições para
uma cultura de competência tecnológica e de adesão aos processos
e regras do capitalismo europeu. O objectivo, diga-se, foi total ou
parcialmente gorado
6
;
e daí o progressivo dissipar da atmosfera de
esperança. Ainda assim,eram inegáveis as evidências de umamelho-
ria de condições sociais - ou,na linguagemda época,de«Progresso».
As tensões sociais eram também minoradas pelo fluxo migratório
ímpar dos camponeses pobres para o Brasil, que actuava como uma
válvula de escape para a falta de mobilidade social e para o desem-
prego
7
.
Finalmente,
last but not least
,
o período caracterizou-se por uma
relativa estabilidade política favorecida quer pelo crescimento eco-
nómico,quer pela instauração como sistema de governação do rota-
tivismo bipartidário. A respeito deste, já muito se frisou o quanto, ao
nível das concepções do que hoje se chama «governância», eram
superficiais as divergências entre os dois partidos alternadamente no
poder. De facto, como taxativamente declaram Vargues e Ribeiro
(1993
a: 202), os partidos não apresentavam diferenças doutrinário-
-
ideológicas substantivas entre ambos. Constituíamantes o que hoje
apelidaríamos talvez de«bloco central»…Como também já foi repe-
tidamente afirmado,a sua existência autónoma dependia de neces-
sidades individuais de protagonismo e, sobretudo, da manifestação
de interesses frequentemente conflituais de diferentes oligarquias
financeiras portuguesas que o investimento em infra-estruturas
(
como a rede ferroviária e viária) fomentou e integrou no capitalismo
A
nalisaremos aqui uma pequena brochura (apenas 16 páginas),de
papel muito modesto, intitulada
O Conselheiro Amoroso
.
Con-
siste,como a capa anunciava ao público da época (1896),numa
«
col-
lecção
1
de cartas amorosas entre dois apaixonados»
,
ou seja, trata-
-
se de um reportório de cartas a copiar.Apesar de a brochura não indi-
car que se trata de uma reimpressão, a data em que foram escritas
é duvidosa: quando abrimos a primeira página reparamos por exem-
ploqueo subtítuloaí se transformouem
Nova Collecção de Cartas Amo-
rosas Entre Dous Amantes
.
Esta última expressão, mais arcaica
2
do
que aque lemos na capa,é aque verdadeiramente acompanha o esti-
lo do texto, que, como veremos, consiste num feixe dos lugares
comuns vocabulares e metafóricos do discurso sobre os afectos que
fora popular décadas antes,mais precisamente no terceiro quartel do
século dezanove (1852- 1876)
3
,
o período a que em Portugal se cha-
mou Regeneração.
Ora este artigo procura integrar as duas dimensões (que, embora
insuficientes por si só,por vezes reciprocamente se ignoram) do campo
teórico chamado de «estudos culturais»: por um lado, uma análise
centradanos textos,nos significados e na significação;por outro,uma
interpretação das relações de poder social apresentadas nos textos
atendendo àquelas características da estrutura social que podem
configurar os processos de comunicação e os produtos culturais.
4
Assim sendo, não será de estranhar que logo à partida iluminemos o
nosso entendimento destas cartas relembrando,de formamuito sim-
plificada,alguns aspectos da situação política e económica da Rege-
neração que nos interessarão posteriormente.
O aspecto mais influenciador de todo o contexto epocal será talvez
o (moderado, mas constante) crescimento económico.
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A leitura da
imprensa permite detectar igualmente uma atmosfera de esperan-
ça - essa sima dissipar-se lentamente ao longo do período... - desen-
O Conselheiro Amoroso:
Sensibilidade e Racionalidade
Instrumental na escrita
romântica
Teresa Cláudia Tavares
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Mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea; Professora-Adjunta do Instituto Politécnico de Santarém