Página 33 - Códice nº1, ano 2004

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Ilustração do capítulo 110 do exemplar do «Livro dos Mortos» feito para o escriba Ani (XIX dinastia, cerca de 2500 a. C.).
Início do capítulo 125 do exemplar do «Livro dos Mortos» feito para o escriba Ani (XIX dinastia, cerca de 2500 a. C.).
Dos muitos capítulos do «Livro dos Mortos» de desigual significado
destacam os autores que se têm debruçado sobre o texto alguns
que podem ser considerados como mais importantes. É o caso do
capítulo 6, instruindo as estatuetas funerárias para substituírem o
defunto nos trabalhos agrícolas do Além (as estatuetas são chama-
das chauabtis até à XXI dinastia e depois uchebtis). O capítulo 17, um
dosmais longos,como qual se inicia a fase de regeneração domorto,
coma recuperaçãoda falaedonomenos seguintes.Ocapítulo 30 impe-
de o coração de testemunhar contra o seu proprietário, e os que se
seguem protegem o corpo do defunto contra vários perigos que o
ameaçam e propiciam-lhe a suave brisa para respirar. Com o capítu-
lo 64 inicia-se o processo de transfiguração do defunto que, já sola-
rizado, entra no tribunal de Osíris (capítulo 125 da «confissão
negativa»).
Embora o «Livro dos Mortos» esteja focado na outra vida, alguns
dos capítulos seriam supostamente eficazes também neste mundo:
os conteúdosmorais tambémse aplicavama esta vida. Cada frase da
chamada«confissãonegativa»,proferidaantes do coraçãododefun-
to ser pesado na balança, reflectia um código de conduta que devia
ser seguido durante a vida terrena. Semuma existênciamoral e exem-
plar,não havia a esperança de uma bemsucedida vida no Além,natu-
ral continuação da efémera que o candidato à eternidade fruíra na
vida terrena. Alguns capítulos revelam de facto uma apreciável ele-
vação moral e patenteiam o apreço pelas normas maéticas, mas
andama par de outros que recomendamo conhecimento dos nomes
bizarros de estranhas divindades ou avisam o morto para não comer
excrementos ou beber urina (capítulo 53).
Para alcançar a sua própria divinização, o defunto passava por qua-
tro fases consecutivas: a morte ou sacrifício; a ressurreição no outro
mundo; a transfiguração em um e em múltiplo; a ascensão e glorifi-
cação/divinização. Então sim, tornava-se um
akh
.
O mais importan-
te era chegar à metáfora central do papiro e ao momento crítico da
passagem deste mundo para o outro: a pesagem do coração, o mais
decisivo e simbólico capítulo do «Livro dos Mortos». Aqui, a imagem
visual representa simbolicamente o julgamento da condutamoral do
morto, com o seu coração colocado num dos pratos da balança
enquantonooutroestáa levepenadadeusa
Maet
.
Para todos os seres
humanos significava que os pecados não deveriam ser mais pesados
que uma pena; o critério do julgamento era tão imparcial, justo e
impessoal comonumabalançadeummercado.Duranteo ImpérioNovo,
estas cenas de pesagem eram geralmente colocadas perto do início
dos papiros, que aliás não continham todos os densos capítulos do
«
livro». A implicação era óbvia: a virtude era necessária na procura
da passagem para uma melhor vida no Além. E para isso bastava ter
cumprido a
maet
no quotidiano, para que depois, no momento deci-
sivo do julgamento osírico emaético,o defunto pudesse dizer ao reci-
tar o capítulo 125: «Eu nunca fiz mal a ninguém!»
Os capítulos do «Livro dos Mortos» podiam ser inscritos nas paredes
do túmulo,sobreos sarcófagos,emescaravelhos do coraçãoe emesta-
tuetas funerárias, entre outros suportes menos usados. Temos no
nosso país sugestivos exemplos desta aplicação emvários materiais,
pertencentes a colecções de antiguidades egípcias de diversosmuseus
e instituições.
Umdos sarcófagos que está noMuseu Nacional de Arqueologia,per-
tencente a um sacerdote do deus Min, chamado Pabasa, tem pinta-
doumextractodo capítulo 38B eumextractodo capítulo 54 (com inclu-
são de uma curta passagem do capítulo 56). O primeiro solicita para
o defunto a respiração eterna,dispondo da inefável faculdade de via-
jar nas barcas divinas dos deuses Atum e de Ré, enquanto o segun-
do, também relacionado com a respiração no Além, alude ao ovo pri-