Página 28 - Códice nº1, ano 2004

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Para isso omorto temde comparecer no tribunal de Osíris e de Maet,
a deusa da verdade,justiça,rectidão,equilíbrio,ordemcósmica e uni-
versal.Nesse tribunal divino,onde tambémestãopresentes outras divin-
dades como Anúbis, protector das actividades da mumificação e
embalsamamento e vigilante das necrópoles,Tot,deus da escrita,que
vai registando todos os momentos que decorrem na sala de justiça,
por vezes Hórus e outros deuses, o defunto vê o seu coração
a ser pesado numa balança para se verificar se está
isento de pecados. Tal como a metáfora da balança
do julgamento de Osíris, as imagens dos textos que
se inserem no «livro» derivam directamente do
mundo do quotidiano e do ambiente natural do país
do Nilo. O local da outra vida nos Campos de Iaru
(
Sekhet-Iaru)
,
os Campos Elíseos dos Gregos, emer-
giuda visãoalongada e pacíficaproporcionadapelos
dourados canaviais, à semelhança das lagoas do
Delta com a sua abundância de aves aquáticas e
dos bosques ao longo das margens do Nilo. Os egíp-
cios ainda candidatos a múmia anteviam com gran-
de convicção o que esperavam encontrar na outra
vida:pântanos iguais àqueles onde tinhamcaçadoduran-
te a vida terrena e campos iguais aos que haviam cultivado,
de preferência aindamais úberes. Os Campos de Iaru são traduzíveis
por Campo dos Juncos,aparecendo tambémemvários capítulos outra
região paradisíaca, commuitas plantas e comágua emabundância,
o Campo das Oferendas
(
Sekhet-Hetepu)
.
Alguns capítulos do «Livro dos Mortos» destinavam-se a ser recita-
dos pelos sacerdotes do
ka
,
ou sacerdotes
sem (setem)
,
outros põem
o próprio defunto a falar. Para se proferir algumas das fórmulas era
preciso escolher bemomomento e cumprir alguns gestos propiciató-
defunto na sua viagempara o Além. O rolo de papiro era colocado no
túmulo,juntodamúmiaoumesmo inseridonas faixasmortuárias,como
autêntico «texto de apoio» que ajudaria o morto na sua viagem
rumo ao Ocidente (a região dos mortos) e à Duat. Em suma, o propó-
sito da colectânea de fórmulas nunca foi estabelecer as bases da
religião egípcia, nem guiar o crente para uma vida específica religio-
sa, mas sim auxiliar o seu dono no outro mundo, ele que
tinha pago bemo seu exemplar pessoal.De facto,o indis-
pensável «Livro dos Mortos» nunca foi, nem poderia
ser, formalizado como cânone formalizado. É que a
religião egípcia não assentava sobre revelações: as
suas doutrinas não eramatribuídas a nenhumpro-
feta ou intermediário com inspiração divina, que
fosse comparável a Cristo, a Maomé ou a Buda. Por
outro lado,o«Livro dosMortos»,como viático para
alcançar o Além, preocupa-se basicamente com a
vida no outro mundo, e não é um texto fundamen-
tal,mas simparte de uma vasta literatura religiosa,
da qual, de resto, nem é o melhor exemplo.
Na colectânea que se foi forjando a partir do Impé-
rioMédio foram,ao longo do ImpérioNovo,e comvárias
adaptações posteriores,dando entrada textos dispersos e
heterogéneos que incluíam hinos e preces, invocando as divindades
relacionadas como local de redacção dos novos fragmentos. Em todo
o caso dois deuses avultam:Osíris,rei da eternidade,senhor do Além,
e Ré, que pela Duat passa navegando na barca solar. Estes deuses
reflectemos dois aspectos da perenidade que o defunto almejava no
processo de transfiguração e de ressurreição: obter a osirificação
para se tornar um deus no Além e a solarização para poder de lá sair
viajando pelo céu na barca solar de Ré.
Base de um escaravelho do coração, com o capítulo 30 do «Livro dos Mortos» (Museu da Farmácia, Lisboa).
Capítulo 84 do exemplar do «Livro dos Mortos» feito para o escriba Ani (XIX dinastia, cerca de 2500 a. C.).