Página 27 - Códice nº1, ano 2004

O«Livro dosMortos»é a traduçãomoderna da expres-
são egípcia
Rau nu peret em heru
,
a qual à letra vem a
dar «Fórmulas para sair para o dia»ou,de uma formamais
completa,«Fórmulas para sair à luz do dia». Foi o egiptó-
logo alemão Richard Lepsius que em meados do século
XIX,na sequência do seu estudo feito numgrande papi-
ro que hoje se encontra no Museu Egípcio de Turim, deu
à compilação o nome de
Totenbuch
.
As dificuldades de
interpretação do texto que Lepsius sentiu tambémsen-
tiramos estudiosos que depois dele se debruçaramsobre
o«livro».Damúltipla actividade de investigação de diver-
sos egiptólogos surgiram diferentes versões em várias lín-
guas. Por sua vez,dos originais de especialistas estrangeiros,
que são geralmente em francês ou inglês, têmsido feitas ver-
sões para língua portuguesa no Brasil e em Portugal, as quais
reflectemalguma instabilidade de redacção e de interpretação,
por vezes com graves erros, fazendo com que elas sejam prati-
camente inaproveitáveis. Mais vale por isso consultar as edi-
ções em língua estrangeira, perante o crasso desleixo dos nos-
sos tradutores e redactores que seaventuraramapublicar as suas
displicentes e desleixadas versões no nosso país.
Nãohána verdadeumúnicomodelodeste típico«livro»,exis-
tem exemplares com variações e omissões, uns mais com-
pletos e melhor decorados, outros mais modestos e por
vezes compoucos capítulos.De qualquer forma,eles foram-
se inspirando emmodelos precedentes. Àmedida que o tempo
passava os novos textos vinham com adaptações que acompanha-
vam as mutações políticas, ideológicas e sociais, tendo sempre em
comum o facto de servirem para proporcionar ao defunto o conheci-
mento das fórmulasmágicas que o levariamaalcançar o outromundo.
Partia-se do princípio que o caminho para o Além esta-
va pejado de perigos vários e que o conhecimento pré-
vio desses perigos era a condição reconfortante para que o
defunto chegasse incólume ao outro mundo, onde teria
lugar omomento fundamental por que todos esperavam:
o renascimento. E se o conhecimento dos perigos era uma
arma de que o esforçado candidato à eternidade dispu-
nha, outro aspecto relevante havia que ter em conta: o
conhecimento dos nomes desses mesmos perigos, figu-
rados em guardiões de portas e de sítios esconsos com
nomes estranhíssimos. Saber os nomes dessas equívocas
personagens e dos vários sítios da Duat, e além disso pro-
nunciá-los, era assegurar um percurso isento para a trans-
figuraçãoque levariaao tãoesperado renascimento,passando
omorto a ser Osíris,isto é,a ser deus e a poder viajar na barca
solar, sublime recompensa para quem tinha praticado o bem
durante a sua passagem pela terra.
Muitos exemplares do «Livro dos Mortos», sobretudo em
papiro, estão hoje expostos ao público ou conservados nas
reservas dos museus, tendo chegado até nós centenas des-
ses papiros repletos de texto emescrita hieroglífica cursiva ou
hierática e decorados com belas gravuras pintadas ou
desenhadas a traço fino. O defunto tinha ainda à sua
disposição passagens do«Livro dos Mortos»na pare-
de do seu túmulo.
Embora os especialistas desde cedo se tenhamapercebido
de que o «Livro dos Mortos» não era uma Bíblia egípcia, essa noção
persistiu no imaginário do público. A verdade é que, não sendo pois o
«
livro»propriamenteumaBíblia,nemummanual de iniciação filosófica,
era no entanto indispensável entre tudo aquilo que acompanhava o
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Estatueta funerária de Djedhor, com o capítulo 6 do «Livro dos Mortos» (Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto).