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embalsamamento emumificação,o ritual do culto de Ré e as «Lamen-
tações de Ísis e Néftis».
Mas sem dúvida que, entre todos os textos preparados para acom-
panhar o defunto rumo ao Além, o mais famoso é o «Livro dos Mor-
tos». Trata-se não propriamente de um livro no sentido moderno do
termo mas sim de diversos conjuntos de textos mágicos de timbre
religioso e funerário produzidos durante praticamente todas as épo-
cas da história do Egipto, escritos sobre diferentes tipos de suportes,
com uma especial predilecção pelo papiro, o antepassado do actual
papel. O «Livro dos Mortos» não surgiu de repente, ele é o resultado
de uma longa evolução que remonta já ao III milénio, pelo menos à
V dinastia (cerca de 2400 a. C.), reflectindo o uso de textos que
vinham, alguns deles, das primeiras dinastias. Em suma, o «Livro dos
Mortos»é uma fasemais avançada de textos anteriores que lhe ser-
viram de basilar inspiração.
Dos textos funerários egípcios mais antigos, avulta logo o conjunto
de fórmulas a que se dá o nome de «Textos das Pirâmides» porque
eles foram gravados no interior da pirâmide de Unas, rei da V dinas-
tia, e, a partir daí, em todos os túmulos reais do Império Antigo até
ao ImpérioMédio. Depois,comos acontecimentos ocorridos em finais
do Império Antigo (cerca de 2200 a. C.),gerou-se o clima propício para
que os funcionários se fossem locupletando comos anteriores textos
funerários reais emproveito próprio,passando a gravar nos seus sar-
cófagos passagens deles adaptadas ou criadas de novo. Estes textos
adaptados receberam por isso o nome de «Textos dos Sarcófagos».
Foi desta compilação que começou a tomar forma, em princípios do
Império Médio, um novo conjunto de textos de carácter mais osírico,
isto é, onde Osíris, deus dos mortos, era mais insistentemente solici-
tado, que hoje designamos por «Livro dos Mortos». A expressão não
é muito feliz mas foi ela que acabou por se consagrar.
P
ara alcançarem incólumes o Além,onde eternamente esperavam
viver uma vida deliciosa em que piamente acreditavam, os anti-
gos Egípcios serviam-se de vários textosmágicos e profilácticos capa-
zes de lhes assegurar um caminho isento de perigos até ao Paraíso.
Um dos mais antigos é o chamado «Livro dos Dois Caminhos», apa-
recido no ImpérioMédio,com textos e ilustrações emsarcófagos apar-
tir daXI dinastia (cercade 2000a.C.),que inaugurouuma sériede com-
pilações que tinham por objectivo descrever a complexa topografia
do outro mundo. Veio depois, com maior desenvolvimento, o mais
conhecido«LivrodeAmduat» (ou«LivrodoqueestánaDuat»,oAlém).
Havia ainda o «Livro das Portas», que apresentava as doze horas do
Além correspondentes a portas que eram vigiadas por guardiões em
forma de serpentes cuspindo fogo, e ainda o «Livro das Cavernas»,
descrevendoos sítios recônditos doAlémondeabundavamas serpentes
e os buracos profundos e escuros onde tinha lugar a gestação do
novo Sol queaparecerá comoKhepri (odeus daalvorada) abrilhar triun-
fante no horizonte pela manhã. Outros textos, mais tardios, eram o
«
LivrodeAker»,muitoenigmáticoededifícil interpretação,oqual apa-
rece apenas pintado no túmulo do faraó Ramsés VI no Vale dos Reis,
o «Livro das Respirações», evocando o sopro da vida que Ísis propi-
ciouaOsíris paraqueestedepois demorto ressuscitasse (datada Época
Baixa, a partir do século VIII a. C.). Dele veio a nascer uma nova com-
pilação mágica que recebeu a designação de «Segundo Livro das
Respirações» ou «Que o meu nome floresça», onde se espelha a
preocupação pela sobrevivência do (bom) nome do defunto. Enfim,
outros livros existiam, como o «Livro de Apopis», que incluía o ritual
para abater a serpente maligna Apopis que tentava impedir a mar-
cha nocturna da barca solar. Podem incluir-se ainda no número dos
chamados «Livros do Além» mais alguns textos de timbre mágico e
funerário como o ritual destinado à abertura da boca, o ritual do
O
«
Livro dos Mortos
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do antigo Egipto:
Um viático para o Além
Luís Manuel de Araújo
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Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Instituto Oriental)